quarta-feira, 18 de novembro de 2015

O Pintassilgo de Donna Tartt (“a Dickens do século XXI”)

O Pintassilgo é um livro infantil para adultos ou sinfonia de prodigiosa imaginação, está traduzido em 20 idiomas e a suscitar um debate sobre o gosto literário.
No princípio não há uma ideia, mas uma imagem, quase sempre um desenho, a sua autora, Donna Tartt, escritora natural do Mississippi, nos EUA, onde nasceu em Dezembro de 1963, escreve um romance que começa por ser uma montagem de desenhos, frases, recortes de excertos de blocos de notas onde o texto vai crescendo à mão, a caneta azul e vermelha, até ganhar corpo.
É um processo longo, a autora demora cerca de uma década a compor cada livro, “Já tentei ser mais rápida, mas não funciona. Não retiro qualquer prazer da escrita e se o escritor não tiver prazer não o pode passar ao leitor”, tem dito Tartt sobre a sua escrita lenta.
Donna Tartt a quem já chamam “Dickens do século XXI)
Em 32 anos de escrita publicou três romances (A História Secreta, O Pequeno Amigo), o último, O Pintassilgo, lançado nos Estados Unidos no Outono de 2013, há cerca de um ano, já vendeu mais de um milhão e meio de cópias e venceu o Pulitzer para ficção em Abril deste ano, dividindo a crítica em língua inglesa, os que o consideram uma sinfonia extasiante, como o escritor Stephen King nas páginas do The New York Times Book Review, e quem, como o crítico James Wood, o tenha referido como um livro infantil para adultos no texto que assinou na The New Yorker.
Também já este ano, foi ainda notícia nos principais jornais de língua inglesa por ter “falhado” a longlist do Booker Prize (o vencedor será conhecido no dia 14 de Outubro) e está na gênese de mais uma discussão sobre o futuro da literatura, o que é um bom romance e quem define essa qualidade.
A grande comparação é com Charles Dickens, nas poucas entrevistas que tem dado, a autora fala de Oliver Twist como o primeiro livro que leu de um escritor que apresenta como grande referência pela capacidade de envolver o leitor com uma geografia e uma personagem, dando-lhe a ilusão de uma voz íntima, da partilha de sentimentos como a alegria ou a tristeza, “O livro vive dentro da minha cabeça; ia para a escola a perguntar-me como estaria Oliver”, contou ao The Independent durante a promoção de O Pintassilgo, referindo-se a um tempo em que devorava livros e que foi o seu grande formador.
Natural de uma pequena cidade do Mississippi onde cresceu numa família de amantes de livros, Donna trabalhou numa biblioteca, lia tudo o que tinha à mão, sobretudo os clássicos, e dividia esse interesse com as artes plásticas. Um curso de contos, aos 18 anos, chamou a atenção dos formadores para o que consideraram ser “um gênio literário”.
Em 1982 chegava à Costa Leste, à Universidade Bennington, na Nova Inglaterra, para estudar literatura clássica. Teve como colegas e amigos Jonathan Lethem (n. 1964, autor de Tu Ainda não Gostas de mim, que também se envolveu numa contenda verbal com Wood depois de o crítico o ter considerado uma desilusão) e Bret Easton Ellis (n. 1964, autor de sucessos como O Psicopata Americano ou Menos que Zero), dois dos nomes mais falados da literatura americana. Um e como o outro estiveram envolvidos no lançamento literário de Donna Tartt, em 1992.
Ellis apresentara-a à sua editora e nesse ano publicou A História Secreta, um mistério com um crime em mais de 700 páginas, chegou à categoria de “notável” em muitos suplementos literários, vendeu mais de cinco milhões de exemplares e foi traduzido em 23 idiomas.
Em 2002 Tartt reaparecia depois de dez anos de ausência, com o segundo romance, O Pequeno Amigo.
A misteriosa Donna Tartt
Cada um dos seus três romances levaram-lhe cerca de uma década a escrever. Nesses períodos, não participa em festivais literários, não vai a feiras de livros, não dá aulas em universidades, não frequenta o meio onde se movem os nomes mais sonantes das artes e letras do seu país. Vive sozinha numa quinta na Virginia e passa temporadas em Manhattan. O mistério Tartt foi enriquecendo com muitas “verdades” a circular acerca da escritora que agora tinha outra característica a alimentar o carisma: a reclusão, “Eu não sou uma reclusa ou eremita. Simplesmente, não frequento eventos literários e quando estou a escrever tento não marcar nada. Não gosto de olhar para o relógio a ver se já são seis da tarde para ter de me vestir para jantar”, disse numa entrevista de promoção a O Pintassilgo, e em cada aparição ou frase ou emoção volta a interrogação, até que ponto Tartt é também uma construção literária.
Ao contrário do segundo romance que teve uma vida discreta depois do enorme ruído do primeiro, esta terceira obra recuperou o “mito Tartt” de forma ainda mais intensa, “Como demoro muito tempo entre cada livro, cada vez que apareço encontro um mundo diferente”, referia-se em comentário às exigências de gestão de imagem que atualmente se pedem a escritores, quase todos com páginas de facebook e contas de twitter, calendários carregados de eventos, aparições em programas de prime-time na televisão. Não cede, continua a escrever à mão em blocos que transporta para todo o lado e diz que usa a Internet apenas para pequenas consultas, como endereços de restaurantes ou, no caso deste O Pintassilgo para consulta o Google Earth, um auxiliar para construir melhor ambientes das cidades onde a ação decorre: Nova Iorque, Las Vegas e Amesterdão.
Tartt conta que o motivo para O Pintassilgo foi a imagem que lhe chegou da destruição dos Budas de Bamiyan (património da Humanidade) pelos talibãs, em Março de 2001, meses antes dos atentados no World Trade Center, em Setembro desse ano. Falar do terrorismo e de obras de arte desaparecidas, por tráfico ou destruição, era uma das propostas para este livro que começou a definir-se muito depois das primeiras frases terem sido escritas num bloco de notas, há vinte anos, quando a escritora andava em digressão para promover A História Secreta. “O que escrevi nessa altura sobre Amesterdão acabou por manter-se”, contou numa conversa em Londres com a jornalista da BBC Kirty Wark onde comenta ainda o fato, assinalado por alguns críticos, de ser uma mulher que escolhe protagonistas masculinos (é assim no primeiro e no terceiro romance) dando-lhes voz. É um eu masculino na ficção, nada de estranho, sublinha. A ficção é isso, permite viver vidas impossíveis.  
O Pintassilgo
Como os anteriores, O Pintassilgo é um livro de mistério que parte de um acidente mais ou menos obscuro.
O Pintassilgo centra-se na figura de Theodore (Theo) Decker que encontramos em Amesterdão em circunstâncias desesperadas e começa a contar a sua vida em retrospectiva a partir do episódio transformador. Na manhã em que seguia para a escola com a mãe, chamada a uma reunião com o diretor, a chuva levou-os a uma paragem no Metropolitan Museum. Estavam no interior quando aconteceu uma explosão reivindicada por um grupo terrorista que destruiu parte do edifício e matou a mãe de Theo.
Entre os escombros estava Welton (Welty) Blackwell, um velho que antes de morrer lhe pede, numa conversa que pretende ser cheia de simbolismo e determinante no enredo, para “salvar” um quadro. Era "O Pintassilgo", de Fabritius, não mais (outro acaso construído) do que a pintura preferida da mãe, uma mulher bonita e dinâmica com uma vida complicada por um marido bêbado que a abandonou sem deixar saudades. Theo, então com 13 anos, levou o pequeno quadro com ele e passou a ser em simultâneo a imagem da sua culpa e o seu elo à mãe com quem tivera uma relação muito próxima.
Abandonado pelo pai, Theo é levado pela família de um amigo rico. Desnorteado em seu novo e estranho apartamento na Park Avenue, perseguido por colegas de escola com quem não consegue se comunicar e, acima de tudo, atormentado pela ausência da mãe, Theo se apega a uma importante lembrança dela, uma pequena, misteriosa e cativante pintura que acabará por arrastá-lo ao submundo da arte. Já adulto, Theo circula com desenvoltura entre os salões nobres e o empoeirado labirinto da loja de antiguidades onde trabalha. Apaixonado e em transe, ele será lançado ao centro de uma perigosa conspiração. 
Um rumo entre o mágico e o existencial
A escrita de Tartt adjetiva, cria metáforas, traça um rumo entre o mágico e o existencial em que o quadro é guia criativo e espiritual de um rapaz que vais buscar características de Oliver Twist ou Pip, herói de Grandes Esperanças de Dickens. 
As inquietações e interrogações de Theo, jovem ou já adulto, sobre a pintura que viu pela primeira vez com a mãe são as do livro.
O Pintassilgo, editado pela Companhia das Letras, é uma hipnotizante história de perda, obsessão e sobrevivência, um triunfo da prosa contemporânea que explora com rara sensibilidade as cruéis maquinações do destino.

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